Associação Brasileira de Patologia do Trato Genital Inferior e Colposcopia
Associação Brasileira de Patologia do Trato Genital Inferior e Colposcopia

Citohistopatologia da neoplasia intraepitelial cervical

Carla Guerra Martins Kemp
Gustavo Focchi
Celia Sakano
Nelson Valente Martins
A citologia é o método mais rápido e econômico para detectar as lesões induzidas pelos HPVs. Sua acurácia é controversa na literatura, provavelmente seu valor seja exagerado por alguns autores e depreciado por outros. Esse método de detecção está sujeito a erros desde a colheita do esfregaço até a sua interpretação.

Sabe-se que a citologia aponta a presença de lesão epitelial, mas não o local da alteração tecidual. Essa informação será dada pela colposcopia. Identificado o local, efetua-se a biópsia, seguida pelo exame histopatológico. Alguns denominam esses três exames de diagnóstico morfológico para diferenciá-lo do diagnóstico bio-molecular.

Demonstra-se evidente associação entre HPV e neoplasia cervical.

Os distúrbios de maturação já foram denominados de displasias; do grego dis = plasia e plasein = formar. É termo bastante abrangente, e por isto, muitas vezes usado de maneira errônea.

Conceito de displasia segundo a Organização Mundial de Saúde:

Lesão na qual parte da espessura do epitélio escamoso é subs­tituída por células com vários graus de atipia.

Essencialmente a displasia representa uma reação do epitélio a uma agressão. Assim, o epitélio normal, sob determinado estímulo, apresenta alterações morfológicas, caracterizadas como atipias celulares.

Classificação: classifica-se a displasia três grupos:

Leve; quando apenas o terço profundo foi comprometido

Moderada; o comprometimento do epitélio atinge a porção mediana

Intensa; apenas as camadas mais superficiais apresentam diferenciação.

O termo carcinoma in situ define lesões citoarquiteturais que atingem toda espessura do epitélio.

Posteriormente adotou-se o termo Neoplasia Intra-Epitelial (NIC), graduadas em três níveis: I, II, III. Apresentam a seguinte correlação com as displasias:

Correlação NIC / DISPLASIA

NIC I = Displasia Leve

NIC II = Displasia Moderada

NIC III = Displasia Acentuada e carcinoma in situ

Atualmente os distúrbios de maturação do epitélio escamoso vem sendo designados de “Lesão Intraepitelial escamosa”, denominação adotada pela Classificação de Bethesda, que assim subdivide as lesões epiteliais escamosas.

SISTEMA DE BETHESDA

Adequação dos espécimes
Satisfatório para avaliação citológica*.

Satisfatório, mas limitado** por… (especificar).

Insatisfatório*** (especificar).

Caracterização geral das células
Células dentro dos limites normais

Células com alterações benignas, inflamatórias, por atrofia, DIU, radiações, etc., presença de Trichomonas vaginalis, Candida albicans, Herpes vírus II, outros agentes.

Células escamosas anormais
Escamosas com atipia de causa indeterminada (ASCUS)

Lesão de baixo grau (displasia leve ou NIC I), presença de HPV (coilocitose e ou outros sinais de alterações citológicas virais)

Lesão de alto grau (displasias moderada/acentuada ou NIC II/ NIC III)

Carcinoma escamoso

Células glandulares
Endometriais benignas na peri ou pós menopausa.

Glandulares com atipia de causa indeterminada ( AGUS).

Carcinoma endocervical, endometrial, extra-uterino.

Outras Neoplasias Malignas

Avaliação hormonal.
Índice de maturação (correlacionar com fase do ciclo menstrual).

QUALIDADE DAS AMOSTRAS

A amostra deve ser considerada SATISFATÓRIA* quando :

·Identificação correta da paciente na parte fosca da lâmina (s) e no recipiente (vidro/ caixinha)

·Identificação correta da paciente no pedido médico devendo constar obrigatoriamente a idade data da última menstruação, data da coleta, suspeita clínica, achados colposcópicos, eventuais resultados citológicos / histopatológicos anteriores e outros dados clínicos que facilitem o diagnóstico citopatológico

·Os esfregaços devem ser finos, fixados logo após a colheita, deve conter células endocervicais ou da JEC. O número exigido é de dois “clusters” com cinco células cada um. Recomenda-se colheita endocervical com escova apropriada.

A amostra deve ser considerada SATISFATÓRIA MAS LIMITADA quando :

· Faltar informação clínica mínima (nome legível DUM, data da coleta)

·Esfregaços espessos, fixação indequada, ressecamento pelo ar, hemorrágicos ou outros contaminantes que impeçam a interpretação de 50 a 75% das células do esfregaço

·Ausência de células endocervicais ou da JEC

A amostra deve ser considerada INSATISFATÓRIA*** quando :

·Faltar identificação da paciente na lâmina ou no pedido médico

·Lâminas quebradas sem possibilidade de restauração

·Esfregaços espessos,fixação inadequada, ressecamento pelo ar, esfregaços hemorrágicos e de qualquer outra maneira que impeçam o diagnóstico em mais de 75% da lâmina.

A classificação de Bethesda foi adotada inicialmente visando a citopatologia, porém já existem histopatologistas com forte tendência a utilizarem esta classificação também para a própria histopatologia.

Por ser mais difundida em nosso meio, neste capítulo utilizaremos a classificação dos NIC.

Histologia normal do colo uterino

Divide-se o colo uterino em três porções:

-externa ou ectocervical

-interna ou endocervical

-junção escamo-colunar (JEC)

Ectocérvice

É revestida externamente pelo epitélio escamoso estratificado não queratinizado. Este epitélio é renovado a cada 4 – 5 dias durante a vida reprodutiva. Sua maturação é acelerada na presença de estrogênios e inibida por progestágenos, essencialmente, na porção média do epitélio. Na vida adulta podemos identificar também grandes quantida­des de glicogênio na presença de estrogênios . Este também é o caso de recém nascidas devido ao estímulo estrogênico materno. Na pós menopausa observamos que o epitélio evolui, ou melhor, involui para a atrofia que resulta no afilamento de sua espessura total exatamente devido ao decréscimo ou falta de estrogênios.

Divide-se o epitélio ectocervical em três camadas:

– Camada Basal

– Camada Média

– Camada Superficial

A camada basal é composta por uma ou duas fileiras de células elípticas ou cilín­dricas com aproximadamente 10 Mm de diâmetro. Elas se apresentam com citoplasma escasso e o núcleo orientado de forma perpendicular a membrana basal; o que foi muito bem demonstrado pela técnica de microscopia eletrônica e imunoperoxidase usando an­tilaminina. Estas células estão ativamente dividindo-se. Acima desta camada, na zona média inferior podemos observar células de camada para-basal, que contém um pouco mais de citoplasma, sendo maiores portanto. A síntese de glicogênio ocorre nesta camada do epitélio.

Mais acima, encontraremos as células da camada intermediária, com volume maior e ricas em glicogênio. A partir deste nível, o tamanho nuclear é estável até a su­perfície.

As células da camada superficial são planas, com diâmetro de aproximadamente 50Mm. O núcleo é pequeno e picnótico, seu citoplasma eosinofílico e rico em glicogênio. Querati­nossomos neste nível são facilmente demonstrados com microscopia eletrônica.

A atrofia na pós-menopausa nos mostra pouca ou nenhuma maturação do epitélio. Ocasionalmente células epiteliais escamosas podem nos mostrar grandes vacúolos solitários, podendo lembrar “células em anel de sinete”, sendo este achado totalmente benigno. Alterações muito similares podem estar presentes nas NICs, sendo importante diagnóstico diferen­cial.

Endocérvice

O epitélio colunar endocervical é composto por camada única de células coluna­res muco-secretoras. Estas células possuem um núcleo redondo ou oval, uniforme, cito­plasma granular rico em gotículas de mucina. A secreção pode se apresentar de forma merócrina ou apócrina. Em um corte bi-dimensional a endocérvice exibe o epitélio su­perficial sobre elementos tubulares. Normalmente o epitélio superficial é referido como mucosa e os elementos como glândulas. Foi demonstrado que glândulas endocervicais são profundas e tortuosas chegando até a superfície. O padrão complexo destas estruturas pode ser denominado de cripta glândular. A profundidade destas criptas glandulares pode chegar a 1 cm em um corte bem orientado ( perpendicular ao canal endocervical ). É sabido que o epitélio endocervical tem origem em células subcolunares de reserva e que mitoses são observadas no epitélio colunar em condições normais.

Junção Escamo-Colunar (JEC)

A Junção Escamo-Colunar do colo uterino é o ponto em que o epitélio colunar encontra o escamoso estratificado. Este ponto não é fixo durante toda a vida da mulher. Antes da puberdade a JEC está situada na porção interna do colo, sendo normalmente bem definida e sem alterações. Sob influência de hormônios ovarianos há um aumento de volume do corpo e colo uterino. Pode-se observar, portanto, o epitélio endocervical na parte externa do colo, apresentando-se avermelhado e muito freqüentemente recebendo o termo clínico de “ulceração” (termo errado pois não há de fato presença de ulceração) ou ectrópio. Este padrão é totalmente fisiológico e não um processo patológico. Esta zona de eversão é então exposta a um pH mais baixo o vaginal, o que causa uma série de modificações ou adaptações que culmina na substituição do epitélio colunar por outro mais resistente, o escamoso estratificado. Há dois mecanismos que sugerem estas modificações:

· o primeiro diz que haveria um crescimento indireto do epitélio escamoso es­tratificado adjacente a JEC. Lingüetas de epitélio escamoso cresceriam em di­reção ao epitélio colunar, expandindo-se por entre as células colunares e membrana basal. As células endocervicais seriam, então, gradualmente des­cartadas de forma fisiológica.

·segundo processo, normalmente chamado de metaplasia escamosa (processo que na realidade não é metaplasia verdadeira, pois metaplasia é a substituição de um epitélio adulto ou maduro por outro, diferente, também adulto; portanto só deveríamos chamá-la de metaplasia quando o processo de substituição es­tivesse totalmente concluído; porém para uma melhor facilidade de entendi­mento a designação de metaplasia escamosa já está consagrada em nosso meio.

HISTOPATOLOGIA DAS NIC

NIC 1 :

Caracterizada por uma discreta alteração da arquitetura epitelial as custas de prolifera­ção de células imaturas (basais ou no terço inferior do epitélio), atipias celulares de dis­creta a moderada, coilocitose de moderada a intensa e maturação parcial com diferencia­ção e maturação citoplasmática (citoplasma eosinofílico e amplo) até as células superfi­ciais, porém com núcleos volumosos e densos.

NIC 2 :

Neste caso já observamos que as alterações são mais pronunciadas, ou seja, maior acen­tuação da estratificação do epitélio (acantose), maior de despolarização e proliferação de células imaturas atípicas e menor grau de maturação citoplasmática vista nos estratos superiores, coilocitose é menos frequente e as atipias nucleares mais pronunciadas. Ge­ralmente os dois terços basais estão comprometidos pelas alterações acima descritas.

NIC 3 :

Observamos uma grande alteração da arquitetura das três camadas do epitélio. As células exibem marcada redução da maturação, com perda de volume citoplasmático e aumento de volume nuclear. Os núcleos são hipercromáticos, de cromatina grosseira e de distri­buição irregular. Podem ser observadas mitoses em toda a espessura do epitélio, a coilo­citose não é mais normalmente observada.

CITOPATOLOGIA DAS NIC

LESÃO INTRA-EPITELIAL DE BAIXO GRAU: (LIEBG)

Os critérios citológicos utilizados na distinção entre lesões HPVs induzidas e lesões intraepiteliais de baixo grau não são reprodutíveis além de ambas as lesões terem o mesmo comportamento biológico, devendo , portanto serem classificadas no mesmo grupo biológico. As células intermediárias ou superficiais mostram aumento nuclear equivalente a três vezes a área do núcleo das células intermediárias normais. Observamos também aumento e alteração da forma nuclear acompanhada de hipercromasia com cromatina finamente granulosa.

LESÃO INTRA-EPITELIAL DE ALTO GRAU: (LIEAG)

Segundo a classificação de Bethesda, carcinoma in situ, NIC 2, e NIC 3 são classificadas como lesão intra-epitelial de alto grau, que possuem células menos maduras, ou seja, menores principalmente as custas do citoplasma pois o aumento nuclear é semelhante ao da LIEBG sendo a relação núcleo-citoplasmática aumentada. O núcleo apresenta hipercromasia , com grânulos irregulares de cromatina e membrana nuclear irregular. As células podem se apresentar isoladas ou agrupadas.

ATIPIA CELULAR EM CÉLULA ESCAMOSA DE SIGNIFICADO INDETERMINADO: (ASCUS)

Seu principal diagnóstico diferencial são as LIEBG.

Nos esfregaços diagnosticados como ASCUS observa-se halos claros perinucleares e discreto aumento nuclear de cerca de duas a três vezes o tamanho do núcleo de uma célula intermediária.

Em resumo, existem alterações maiores do que as observadas nas lesões reativas e menores que nas neoplásicas.

PRINCIPAIS DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS:

Alterações vírus induzidas:

Esta sem dúvida nenhuma é a principal delas por nós observada; deve-se entre­tanto levar em consideração critérios rígidos anatomopatológicos para não incorrer neste erro. As alterações cito-arquiteturais HPVs induzidas são crescentes de baixo para cima, ou melhor, das camadas mais inferiores para as superficiais, ao contrário das NICs, já descritas por nós neste capítulo. A principal alteração celular induzida pelo HPV é o coilócito.

Essa célula, geralmente superficial ou intermediária, apresenta bordas citoplasmáticas irregulares, com zona perinuclear irregular clara, rodeada por citoplasma espesso. Esse achado, denominado coilocitose, é talvez a principal característica da célula parasitada pelo HPV. Além da coilocitose observa-se:

·Disqueratose caracterizada pela cor alaranjada do citoplasma;

·Binucleação, ou também a multinucleação;

·Discariose caracterizada por alterações nucleares, que ocasionam aumento no tamanho, na forma, nas bordas nucleares e na relação núcleo-citoplasmática, que está aumentada.

Metaplasia escamosa atípica:

Seu principal diagnóstico diferencial é com as NIC 3, pois nesta lesão observamos a ausên­cia de maturação celular, e este diagnóstico exige que o epitélio alterado seja somente de um tipo histológico no caso, o estratificado escamoso, e em vigência de metaplasia de­vemos lembrar a existência de dois, o estratificado que tenta substituir o colunar. Nota­mos portanto que a superfície dos epitélios metaplásicos tende a ser irregular, como que “serrilhados” e as células escamosas perdem a coesão entre si.

Atipias de padrão reacional:

Devemos lembrar que no caso das NIC e alterações virais há um espessamento do epité­lio (acantose) o que não é visto neste caso. Podemos observar atipias celulares intensas com núcleos volumosos e densos, contudo sem alteração de cromatina (atipia nuclear). Em geral estes quadros estão associados a inflamação intensa, agentes químicos ou físi­cos.

LESÕES GLÂNDULARES

Atipia glandular reacional:

Exatamente como no epitélio escamoso, o glândular pode exibir atipias quando relacio­nado a algumas condições como gestação, infecção por Chlamidia e pelos HPVs; obser­vamos então hipercromasia e aumento da relação núcleo/citoplasmática.

Hiperplasia atípica (neoplasia intraglandular ou displasia glandular):

Nota-se esta alteração essencialmente em criptas glandulares, onde há a presença de células colunares exibindo atipias tais como, cariomegalia, hipercromasia, nucléolo pe­queno e eventuais mitoses.

Além das atipias celulares existem também as arquiteturais. O epitélio apresenta-se com duas ou três camadas, ao contrário do epitélio colunar normal que originalmente exibe uma única fileira de células.

Adenocarcinoma in situ:

Neste caso já há estratificação do epitélio, o nucléolo é mais evidente, mitoses em maior número. Devemos tomar muito cuidado com seus diagnósticos diferenciais já que esta patologia constitui um dos mais difíceis diagnósticos da patologia cervical. Dentre seus diagnósticos diferenciais temos o adenocarcinoma invasivo, metaplasia tubá­rea, efeito radioterápico e reação de Arias-Stella.

LEITURA RECOMENDADA

·STERNBERG SS (ed): Histology for pathologists. New York, Raven Press, 1997.

·WICK MR (ed): Pathology of Pseudoneoplastic Lesions. New York, Raven Press, 1997.

·BIBBO M (ed): Lesões relacionadas à infecção por HPV no trato anogenital. Revinter, 1998.

·CARVALHO FM: Manual de Patologia Ginecológica: roteiros macro e microscópicos. Editora Audichromo, 1994.

·RICHART RM: Intraepithelial Neoplasia of The Lower Genital Tract. Churchill Livingstone, 1995.

·KOSS LG: Cervical (Pap) smear: new directions. Cancer 71: 1406-12, 1993.

·KURMAN RJ, NORRIS HJ, WILKINSONE E: Tumors of The Cervix, Vagina, and Vulva. Atlas of Tumor Pathology, AFIP, 1992.

·THE REVISED BETHESDA system for reporting vercical/ vaginal cytology diagnoses: report of the 1991 Bethesda workshop. Acta Cytol 36: 273-6, 1992.