Associação Brasileira de Patologia do Trato Genital Inferior e Colposcopia
Associação Brasileira de Patologia do Trato Genital Inferior e Colposcopia

Correlação entre métodos morfológicos e biomoleculares no diagnóstico das lesões induzidas pelo HPV

Gerson Botacini das Dôres

Tradicionalmente, os exames diagnósticos usados nas lesões HPV-induzidas são a colposcopia, a citologia e a histopatologia. São métodos subjetivos em sua interpretação, por isso, sua acurácia está diretamente relacionada à experiência do examinador.

Por ser o colo uterino o sítio de maior incidência dessas lesões, nos deteremos na análise do que ocorre nesse órgão.

Na maior parte das vezes, à colposcopia, as lesões HPV-induzidas manifestam-se como imagem plana, leucoacética, às vezes, mosaicos e pontilhados podem ser encontrados. O epitélio aceto-branco isolado ou associado é a imagem mais comum. Hiperqueratose pode estar presente e, por vezes, com relevo, exibindo aspecto cerebróide. Quando totalmente planos, é impossível ao colposcopista diferenciar entre os diversos graus de lesão pré-neoplásica. Todavia, a presença de padrão vascular grosseiro faz suspeitar de lesão de alto grau. Saliente-se que a colposcopia não fornece o resultado preciso da doença. Isso só é possível pelo estudo histopatológico. Ao colposcopista cabe conhecer com minúcias as nuances do epitélio cervical, realizando biópsias nas regiões mais representativas.

Nos últimos dez anos, os novos conhecimentos da história natural do câncer cervical impuseram inúmeras mudanças tanto diagnósticas como terapêuticas. Dentre as primeiras, introduziram-se diversas nomenclaturas cito-histológicas a fim de expressar, com maior exatidão, a provável evolução biológica.

No que respeita à citologia, desde sua introdução, verificou-se desvio na sua principal utilidade. Como as células do colo e da vagina podem ser consideradas espelho do que ocorre no aparelho genital feminino, o diagnóstico citológico passou a tecer considerações sobre outras doenças, infecções e alterações hormonais, por exemplo, sendo que muitas delas dificultam, sobremaneira, a correta avaliação do estado neoplásico celular. Além disso, de maneira errônea, atribuiu-se papel diagnóstico definitivo ao laudo de suspeição citológico. Introduziu-se a citologia para rastrear as alterações neoplásicas das células e é dessa forma que ela deve ser utilizada. Por outro lado, em virtude dos novos conhecimentos sobre essa doença, a nomenclatura proposta por Papanicolaou não deve mais ser usada.

Em 1988 introduziu-se o assim chamado Sistema de Bethesda, que agrega novos conceitos e tenta uniformizar os laudos citológicos. Além disso, sendo descritivo, permite que o citopatologista oriente quando a presença de possíveis alterações não neoplásicas que possam interferir com a precisa avaliação oncológica. Para tomar a conduta apropriada, cabe ao clínico conhecer detalhadamente a nomenclatura e o que ela significa.

De forma geral, o padrão citológico varia de acordo com a gravidade da lesão. Nas lesões de baixo grau, observa-se a presença de células superficiais e/ou intermediárias alargadas, com bordas citoplasmáticas irregulares e com distinta zona perinuclear mais clara rodeada por área de citoplasma espesso, zona essa denominada coilocitose. Disqueratose é achado freqüente. As alterações nucleares são variáveis, podendo aparecer picnose e cromatima marginalizada e fragmentada. Núcleos alargados, gigantes, com binucleação ou multinucleação são achados comuns produzindo aumento da relação núcleo-citoplasmática. Via de regra, o diagnóstico citológico é sugerido na vigência da coilocitose, por ser essa alteração a mais freqüênte e a mais facilmente observável. Os outros critérios citológicos descritos por Meisels e Fortin habitualmente são desconsiderados. Esse procedimento é incorreto, o citologista deve basear-se em todos os critérios citológicos, principalmente os nucleares, para firma a suspeição diagnóstica.

Sob o ponto-de-vista histológico, muitos autores ainda utilizam a classificação proposta por Richat em 1967 para subdivir os diferentes graus de envolvimento neoplásico do epitélio cervical. Todavia, por não refletir o que de fato ocorre nesse epitélio, somos da opinião que ela não deve ser mais usada.

De fato, estudando o comportamento biológico, as análises moleculares dos tipos de HPV e da plodia do DNA associados a cada uma das neoplasias intra-epiteliais, Richart e Wright em 1993, sugeriram que o condiloma plano viral e a neoplasia intra-epitelial de grau I, assim como as de graus II e III são equivalentes dos pontos de vista clínico, molecular e biológico. Por isso, aconselham dividir essa doença em duas categorias: uma denominada de baixo grau, que inclui o condiloma e a neoplasia intra-epitelial de grau I, e outra, chamada de alto grau, que corresponderia às neoplasias intra-epiteliais de graus II e III. Por sua vez, essa classificação estaria em conformidade com a terminologia citopatológica preconizada pelo Sistema de Bethesda.

Pode-se dizer que o aspecto histológico nas lesões de baixo grau é o encontro de hiperplasia epitelial caracterizada por acantose em graus variáveis e papilomatose. Com freqüência, observa-se paraqueratose. Quando há envolvimento glandular e acantose predominante, o padrão apresentado é endofítico. A proliferação de células basais e parabasais é mínima; a polaridade e a organização celular, na maioria das vezes, estão conservadas nas camadas basais, ao contrário das superficiais e intermediárias. Queratinização é achado comum, produzindo hiperqueratose. Figuras de mitose podem existir, mas confinadas a pequenas porções do epitélio. A coilocitose é corriqueira. Já nas lesões de alto grau a coilocitose diminuiu, há maior envolvimento da espessura epitelial, a relação núcleo-citoplasmática é muito alterada e figuras de mitoses atípicas podem estar presentes.

No que concerne ao dignóstico morfológico das lesões HPV-induzidas, múltiplos fatores dificultam sobremaneira sua correta avaliação. Papanicolaou em 1960 já se referia a dificuldade em diagnosticá-la citologicamente, pois as alterações celulares produzidas pelo HPV são freqüêntemente confundidas com aquelas observadas na neoplasia intra-epitelial cervical. Por sua vez, Hughes et al. em 1987, utilizando a fluxometria de DNA, relataram que em algumas lesões condilomatosas benignas, os resultados são similares àqueles encontrados na neoplasia intra-epitelial de grau III.

A luz dos novos conhecimentos dessa entidade nosológica, vários autores, entre os quais Ludwig et al. e Bernstein et al., realizaram estudos retrospectivos verificando que entre 30% a 70% das biópsias anteriormente classificadas como neoplasia intra-epitelial da cérvice eram, na verdade, condilomas.

A condordância entre esses três métodos diagnósticos foi estudada por Dôres et al., mostrando que entre a colposcopia e a citologia ela é de 72,8%; 81,9% entre a colposcopia e a histopatologia e de 54,7% entre a citologia e a histopatologia.

Há inúmeras formas de se explicar este fato:

a citologia ser mais sensível do que a colposcopia

tempo que entremeia a coleta citológica e o exame colposcópico

escolha inadequada do local da biópsia

infecção recente acomentendo pequeno número de células, permitindo o diagnóstico citológico, sem apresentar, contudo, confirmação histopatológica

Como pode ser visto, os exames clássicos são conflitantes entre si, além do que, não têm a capacidade de informar sobre parâmetros considerados atualmente como de grande valor – tipo viral infectante e carga viral – na evolução das lesões HPV-induzidas.

Esses achados motivaram diversos estudos com particular interesse aos seguintes tópicos:

incidência de lesões de alto grau e câncer invasor após citologia negativa

controle de qualidade citológica e histopatológica interlaboratorial

reprodutibilidade e sensibilidade do exame citológico

variações intra-observador e inter-observador nos exames morfológicos

Por isso, nos últimos anos, houve necessidade de ampliar a sensibilidade diagnóstica e, a evolução tecnológica possibilitou que outros métodos laboratoriais fossem testados. Entre esses, pode-se citar as reações imuno-histoquímicas, microscopia eletrônica e hidridização molecular.

A microscopia eletrônica é um método de pesquisa pura, portanto sem utilidade na clínica do dia-a-dia. Em virtude da biologia viral – perda do capisídeo por ocasião da replicação ou integração com o DNA celular – as reações imuno-histoquímicas não se mostraram eficientes, pois apresentam grande número de resultados falso-negativos.

Por sua vez, a biologia molecular trouxe grandes avanços nessa área, podendo ser hoje considerada como método diagnóstico fiel. Com ela foi possível identificar e tipar o HPV além de verificar sua presença na quase totalidade das neoplasias intra-epiteliais e tumores invasivos do colo. Vale salientar que a acurácia do método está na dependência direta do número mínimo de cópias virais diagnosticáveis e do número de sondas de diferentes tipos de HPV presentes na reação.

A correlação entre os métodos morfológicos e biomoleculares foi motivo de diferentes estudos. Em nosso meio, Gallo et al. analizaram 2871 casos. A tabela abaixo resume os resultados:

Método

Especificidade (%)

Especificidade (%)

Colposcopia

14,5

88,9

Citologia

56,0

62,0

Histopatologia

15,1

87,4

Associados

10,3

94,1

Como pode ser visto, apesar da sensibilidade da associação de métodos ser elevada, sua especificidade é baixa. Por isso, os autores concluem que dada à repercussão que o diagnóstico das lesões HPV-induzidas pode trazer para as pacientes, é imperativo, quando da positividade dos exames morfológicos, a realização de teste de biologia molecular para a confirmação segura do resultado.

Em virtude do aumento da incidência das lesões HPV-induzidas e da comprovação de que o exame citopatológico, por suas particularidades, tem percentagens de sensibilidade e especificidade não ideais, tem-se proposto, ao longo do tempo, diferentes critérios citológicos para o diagnóstico dessa doença. De forma geral, utilizam-se duas conceituações distintas. A primeira, denominada estrita, é aquela proposta por Meisels et al., que implica na necessidade do encontro de todas as alterações celulares causadas por esse vírus para se sugerir sua presença. A segunda conceituação, chamada de critérios secundários, foi proposta por Schneider et al. Determina nove achados citológicos e, segundo esses autores, a presença de cinco ou mais deles permite o diagnóstico presuntivo de infecção.

Com a finalidade de verificar a acurácia diagnóstica desses dois critérios citológicos e a biologia molecular, Dôres et al realizam estudo duplo-cego em 191 mulheres. A tabela abaixo mostra os resultados:

Critério

Especificidade (%)

Sensibilidade (%)

Acurácia (%)

Estrito

93,2

60,3

83,3

Secundário

69,9

69,0

69,6

Como pode ser observada, a acurácia diagnóstica é baixa quando a avaliação citológica é feita utilizando-se o critério secundário. Dessa forma, por apresentar melhor correlação com a biologia molecular, é imperativo o uso do critério estrito na análise citológica. O outro parâmetro, pela possibilidade da ocorrência de superdiagnóstico, não deve ser utilizado.

Por se tratar de doença sexualmente transmissível que pode estigmatizar a paciente e influir no relacionamento entre o casal; pela terapêutica prolongada e controversa; pela conotação com o câncer invasor do colo e pelos dados aqui expostos, pode-se afirmar que no diagnóstico das lesões HPV-induzidas o uso da biologia molecular está indicado nas seguintes situações:

confirmação do diagnóstico morfológico

discondância cito-histopatológica

citologia denotando ASCUS ou AGUS

lesões de baixo grau para avaliar a necessidade de tratamento

controle terapêutico

Finalmente, outro ponto que merece destaque é o uso da biologia molecular no rastreamento do câncer do colo. Publicações recentes têm enfatizado a maior acurácia com este método. Leitura detalhada pode ser feita no capítulo “Aspectos Atuais do Rastreamento das Lesões HPV Induzidas e do Câncer do Colo Uterino com Métodos Morfológicos e Biomoleculares”.

Leitura recomendada

Abadi, MA; Ho, GY; Burk, RD, et al. – Stringent criteria for histological diagnosis of koilocytosis fail to eliminate overdiagnosis of human papillomavirus infection and cervical intraepithelial neoplasia grade 1. Hum Pathol, 29(1):54-59, 1998.

Branca, M; Duca, PG; Verderio, P, et al – Reproducibility and accuracy of the diagnosis of cervical intraepithelial neoplasia (CIN) in 15 Italian laboratories: a national pilot project. Development of new indices of diagnostic variability. National Work Group for the expert quality control in cervico-vaginal cytopathology. Epidemiol Prev, 21(4): 252-264, 1997.

Cocchi, V; Carretti, D; Fanti, S, et al. Intralaboratory quality assurance in cervical/vaginal cytology: evaluation of intercytologist diagnostic reproducibility. Diagn Cytopathol, 16(1):87-92, 1997.

Cuzick, J; Beverley, E; Ho, L et al – HPV testing in primary screening of older women. Br J Cancer, 81:554-558, 1999

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Gallo, C; Taromaru, E; Dôres, G – Biologia molecular na determinação da acurácia dos métodos morfológicos no diagnóstico da infecção cérvico-vaginal pelo Papilomavírus humano. XXXIII Congresso Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial, São Paulo, 1999. Anais pág 14, trabaho 22.

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