Associação Brasileira de Patologia do Trato Genital Inferior e Colposcopia
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Estudo “Shape” e as condutas de tratamentos menos agressivos nos cânceres de colo uterino em estadios iniciais

MENSAGEM PRINCIPAL: O estudo SHAPE demonstrou que, em câncer de colo uterino inicial de baixo risco (tumores ≤2 cm, linfonodos negativos e invasão estromal limitada), a histerectomia simples é não-inferior à histerectomia radical quanto ao risco de recidiva e sobrevida. Além disso, apresentou menor taxa de complicações urológicas e melhor preservação da qualidade de vida. Os achados sustentam a histerectomia simples como opção eficaz e mais segura nesses casos.

 

O câncer cervical mantém alta incidência mundial, com mais de 600.000 novos diagnósticos em 2020. Tradicionalmente, a histerectomia radical representa o padrão-ouro para o tratamento de estágios iniciais. Contudo, evidências observacionais sugerem equivalência na sobrevida global entre histerectomia radical e simples para tumores em estágio IA2, além de demonstrarem taxa de infiltração parametrial inferior a 1% em lesões IB1 de baixo risco (≤2cm, linfonodos negativos, ausência de invasão linfovascular e profundidade de invasão estromal <10mm). Diante deste cenário, o estudo SHAPE foi concebido para avaliar a não-inferioridade da histerectomia simples em relação à recidiva em 3 anos.

O estudo SHAPE constitui ensaio clínico multicêntrico, randomizado, fase 3, de não-inferioridade, conduzido em 130 centros distribuídos em 12 países, entre dezembro de 2012 e novembro de 2019. Foram incluídas pacientes com carcinoma escamoso, adenocarcinoma ou adenoescamoso de colo uterino nos estágios FIGO 2009 IA2 ou IB1, com lesões ≤2cm, invasão estromal <10mm obtido na conização/LEEP ou <50% do estroma na ressonância magnética, independentemente do grau histológico, e sem evidência imaginológica de metástase linfonodal pré-operatória. O tratamento realizado para o grupo da Histerectomia Radical foi de histerectomia Piver II com remoção do útero, colo, 1/3 medial dos paramétrios, 2 cm dos ligamentos uterossacrais, 1-2 cm da vagina superior. Já para o grupo Histerectomia Simples foi realizada histerectomia extrafascial com remoção do útero e colo, sem paramétrios adjacentes. Em ambos os grupos a linfadenectomia pélvica e mapeamento de linfonodo sentinela foram realizados sistematicamente.

A população estudada compreendeu 700 pacientes randomizadas na proporção 1:1, sendo 336 para histerectomia simples e 337 para radical, com exclusão de 18 pacientes por doença mais avançada ou recusa do tratamento cirúrgico. A distribuição demográfica revelou 91,7% das pacientes em estádio IB1, 61,7% com carcinoma escamoso e 59,3% com grau histológico 1-2. O diagnóstico de tumor invasivo foi estabelecido em 80,2% dos casos por meio de LEEP/conização. O seguimento mediano foi de 4,5 anos. A abordagem cirúrgica foi aberta, por videolaparoscopia ou robótica. Os achados cirúrgicos demonstraram doença residual no espécime em 45,8% (simples) versus 47,2% (radical), invasão linfovascular em 13,4% versus 12,5%, linfonodos positivos em 3,3% versus 4,2% e envolvimento parametrial em 0% versus 1,8%, respectivamente.

A análise de eficácia revelou taxa de recidiva pélvica em 3 anos de 2,52% para histerectomia simples versus 2,17% para radical, demonstrando não-inferioridade do tratamento conservador. O total de recidivas foi de 21 casos (11 simples, 10 radicais), com distribuição anatômica predominante na cúpula vaginal (9 versus 8 casos). Não se observou associação significativa entre o tipo de cirurgia e sobrevida livre de recorrência pélvica, extrapélvica ou sobrevida global, com mortalidade por câncer cervical de 4 casos no grupo simples versus 1 no radical, sem diferença estatisticamente significativa. Importante destacar que o estudo demonstrou não-inferioridade da via aberta em relação à minimamente invasiva, contrastando com os achados do estudo Laparoscopic Approach to Cervical Cancer (LACC).

O perfil de segurança favoreceu consistentemente a histerectomia simples, com menor incidência de complicações urológicas, incluindo redução significativa da incontinência urinária e retenção urinária, embora lesões intraoperatórias tenham sido mais frequentes neste grupo (7,1% versus lesões vesicais e uretrais mais comuns na cirurgia radical: 2,6% e 1,5%). As limitações do estudo incluem o reduzido número de eventos durante o seguimento e a impossibilidade de generalização para pacientes fora dos critérios de baixo risco estabelecidos. Os resultados suportam a histerectomia simples como alternativa terapêutica eficaz e mais segura para pacientes com câncer cervical inicial de baixo risco, oferecendo preservação da qualidade de vida sem comprometimento oncológico.

 

Dra. Ana Carolina Sica

  • Mestrado em Ciências da Saúde na Irmandade Santa Casa de São Paulo
  • Doutoranda em Ciências da Saúde na Irmandade Santa Casa de São Paulo
  • Preceptora voluntária do Setor de Patologia do Trato Genital Inferior e Colposcopia da Santa Casa São Paulo

Fonte: Plante M, Kwon JS, Ferguson S, Samouëlian V, Ferron G, Maulard A, de Kroon C, Van Driel W, Tidy J, Williamson K, Mahner S, Kommoss S, Goffin F, Tamussino K, Eyjólfsdóttir B, Kim JW, Gleeson N, Brotto L, Tu D, Shepherd LE; CX.5 SHAPE investigators; CX.5 SHAPE Investigators. Simple versus Radical Hysterectomy in Women with Low-Risk Cervical Cancer. N Engl J Med. 2024 Feb 29;390(9):819-829.